Encaixada num
vale cavado entre os concelhos de
Abrantes e Constância correm as águas da ribeira do Alcolobre com origem a sul da aldeia das Bicas, para a qual contribuem
a ribeira da Perna Seca, a ribeira das Bicas e a ribeira de Carvalhal na mesma
linha de água, e o ribeiro de Caldelas, na margem esquerda.
É um vale frondoso, carregado de lendas e misticismo, bastante rico em flora e fauna que noutros tempos albergava a mata Dalcolura, indo-se espraiar na lezíria da Coutada antes mergulhar nas águas do Tejo.
Nela encontramos diversas azenhas abandonadas, encaixadas em desfiladeiros apertados onde se formam pequenas cascatas.
Hoje, apenas a Azenha do Amaral foi recuperada.
As copas das árvores unem-se formando túneis sombrios chamados de galerias ripícolas.
Nestas paragens eventualmente podemo-nos cruzar com galinhas de água, cobras, rãs, e facilmente damos com vestígios e dejectos de texugos e lontras que se ocultam perante a nossa aproximação.
A progressão é feita pelo interior da vegetação densa em que as silvas impõem ordem à fila indiana e nos moderam os ímpetos de exploração.
Alguns
troços são vencidos sobre condutas artesanais de água que se designam por
levadas, cuja missão é dirigirem as águas para as azenhas em ruína ou
transpondo as margens progredindo de rocha em rocha, num teste às sinestesias.
Há uns anos,
os habitantes da aldeia das Bicas, a
montante da ribeira, queixavam-se que as noites eram assoladas por gritos
lancinantes de um ser alado e de grande porte que assaltava as capoeiras
saqueando as galinhas e chupando o sangue ao gado ovino, deixando algumas
cabeças feridas de morte.
Estas pessoas
passaram algum tempo vivendo amedrontadas sob a ameaça do terrível “chupa-cabras”, meio humano, meio bicho.
Era nada mais, nada menos do que o bufo real, enorme ave
de rapina noctívaga e em vias de extinção. Numa das subidas do Alcolobre o nosso
grupo de visitantes supôs ter sido surpreendido por este espécimen que levantou
voo por entre as copas das árvores, vergastando violentamente a folhagem e
formando uma sombra majestosa, bem superior à galeria ripícula.
Através das águas límpidas podemos avistar peixes de pequeno
porte na sua azáfama. O marulhar das águas entrecortado pelo chilrear da
passarada e o coaxar das rãs induzem à contemplação espiritual de cada um de
nós.
Seguindo as
andanças místicas, naquele vale, bem perto da povoação das Bicas, havia um
casario misterioso do qual restam vestígios e se designava por Vale da Vila onde habitaram os
desafortunados romanos e, nos buracos das rochas ao longo da ribeira, viviam “Os Outros”, um povo oriundo do norte de
África, que com poderes sobrenaturais e rodeado de tesouros encantados, metia
respeito às populações mais próximas, fazendo com que se afastassem da região, razão para que o povo autóctone a designasse por Ribeira dos Mouros.
Por ali, o misticismo era uma constante.
Nessas
entranhas raros eram os afoitos que por lá se perdiam ou arriscavam construir
as suas habitações. “Os Outros”, com poderes de invisibilidade, só se revelavam
aos humanos quando estes eram mal baptizados ou quando o desejavam.
No leito da ribeira há um local bastante profundo, designado
de “Poço Negro”, e junto existe uma
abertura numa das rochas, chamada ”Buraca
da Moura”.
Em verões de
tempos idos, aparecia uma moura encantada que, sentada sobre uma rocha que se situava no leito da ribeira e com um pente de
ouro alisava os seus longos cabelos, também dourados.
Tal como
aparecia, assim desaparecia no interior do buraco daquela rocha, deixando
fascinados os poucos que tinham a sorte daquela maravilhosa visão, pasmando
como é que uma rapariga tão linda e singela conseguia viver num espaço tão
restrito, até chegado o dia em que uma rapariga mais afoita resolveu
aventurar-se naquela fenda, tentando ir ao encontro da linda moura
e descobrir o que se passaria no interior daquela rocha.
Já no seu
interior se apercebeu que atrás de si, a rocha se ia fechando suavemente...
desatou a correr para o exterior, valendo-lhe ter despido toda a roupa que
trazia, ficando com o corpo crivado de chagas, vergastado pelas arestas
cortantes das rochas.
Os anciãos costumavam avisar para que ninguém se atrevesse entrar nos rochedos desde a Caniceira ao Carvalhal, pois toda a extensão da ribeira era habitada pelos “Outros” com os seus fascínios e suas maldições.
Perto da foz da ribeira, precisamente no Carvalhal, encontram-se vestígios de
construções que remontam ao tempo dos romanos ou antes disso, visto o local ter
sido habitado por gauleses e celtas
numa mestiçagem de Galo-Celtas, de
que existem vestígios na cruz Celta que
encima a igreja do Crucifixo,
designação bastante peculiar em que os seus naturais se intitulam de “Carinos”.
Naqueles lendários tempos no lugar do Carvalhal vivia um pastor que guardava o seu rebanho junto às
margens da ribeira e ia fazer a sua sesta numa mata onde os troviscos
predominavam.
Durante
as noites, o pastor era assaltado por um sonho em que alguém lhe murmurava:
“Vai a Santarém que lá
está todo o teu bem”
Tanto o sonho o atormentou que resolveu fazer-se ao caminho de Santarém, quando subindo a Calçada da Atamarma, em direcção à cidade, tropeçou, dando cabo de uma bota. Já na cidade, procurou um sapateiro para o qual desabafou:
“Veja bem, há tanto
tempo que ando a sonhar que, se viesse a Santarém encontraria todo o meu bem e
afinal rebentei com uma bota”
Respondeu-lhe o sapateiro:
“O senhor ainda
acredita em sonhos? Ando há tanto tempo a sonhar que na ribeira do Alcolobra
anda um pastor com um rebanho e, debaixo de um trovisco...
...onde um bode capado faz a sesta, está um pote cheio de dobrões de ouro e até se lhe vê o rebordo de tanto o bode rapar a terra para se tombar.”
...onde um bode capado faz a sesta, está um pote cheio de dobrões de ouro e até se lhe vê o rebordo de tanto o bode rapar a terra para se tombar.”
O pastor logo pensou tratar-se do seu bode preto! Em silêncio
e depois de concertada a bota, regressou ao
Carvalhal.
No raiar do
dia seguinte, mais cedo foi com o gado fazer a sesta, espreitando o bode capado
que, sorrateiramente esgravatou o rebordo do pote enterrado debaixo do trovisco, deitando-se sobre ele. Assim o
pastor do Carvalhal descobriu o
tesouro em dobrões de ouro consoante o sapateiro de Santarém lhe descrevera do sonho!